quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

LENÇOS, AVENTAIS E COPOS D’ÁGUA



Facilmente o povo de Deus interpreta mal as suas maravilhas e os seus feitos extraordinários caindo em idolatria. No VT o povo idolatrou a serpente de bronze que Deus tinha mandado Moisés fazer para que o povo fosse salvo das picadas das serpentes (Nm 21.7-9). O povo não entendeu que Deus queria passar apenas uma mensagem de expiação: eles teriam que ter um substituto que se tornaria pecado no lugar do povo (Jo 3.14,15; 2Co 5.21). A serpente já trazia uma imagem de tentação e pecado demonstrado por Moisés em Gênesis e alguém deveria ser punido substituindo aqueles que olhassem para a cruz com fé à semelhança da serpente de bronze.

Segundo o texto de 2Rs 18.4, os israelitas passaram a adorá-la dando-lhe até um nome de Neustã. Além deles não entenderem a mensagem de Deus, adoraram a própria mensagem, pois apesar de que Deus tenha mandado fazer a serpente de bronze para ser um meio de cura das picadas das serpentes, isso não os deu base para fazerem da própria serpente um meio de cura, nem para lhe darem um nome adorando-a, pois aconteceu isso num episódio especial.

Algumas igrejas nos nossos dias têm caído na mesma confusão, só que dessa vez é uma má interpretação de um episódio que aconteceu numa única vez com Paulo em Atos:

Atos 19:11-12  11 E Deus, pelas mãos de Paulo, fazia milagres extraordinários,  12 a ponto de levarem aos enfermos lenços e aventais do seu uso pessoal, diante dos quais as enfermidades fugiam das suas vítimas, e os espíritos malignos se retiravam.

Com base nesse texto, pastores, bispos e apóstolos distribuem toalhas e lenços nos cultos, mandam colocar copos de água encima da TV para que sejam curados, ungem celulares e até lubrificantes íntimos (por incrível que pareça). Afirmam que, assim como aconteceu com Paulo, as pessoas deveriam esperar a mesma coisa dos objetos que forem abençoados por esses obreiros. Já vi depoimentos de pessoas na TV que andam com a sua toalhinha para qualquer imprevisto, fazendo desta um tipo de talismã. Já fui pessoalmente a uma principal igreja que oferece toalhas e lenços. Fiquei impressionado que essas toalhas são vendidas e aquelas que são distribuídas são para aqueles que ofertam uma quantia limite. Dizem eles que não é uma venda, mas uma gratificação àqueles que ofertam a quantia que falam. Isso apenas tem servido para que igrejas aumentem suas finanças em nome desses “lenços sagrados” tendo um objetivo financeiro e desviando a glória de Cristo para esses objetos.

Precisamos interpretar esse texto com muita cautela, percebendo qual a intenção de Lucas ao escrever essa passagem. Concordamos perfeitamente que Lucas tinha intenção doutrinária, mas o livro de Atos é escrito na forma de uma narrativa e precisamos ter todo cuidado ao interpretá-lo. Por exemplo, diante de uma narrativa precisamos ver vários aspectos importantes, respondendo algumas perguntas do texto:

1. O que o contexto e a análise textual poderiam nos dizer sobre essa passagem?


O contexto é de que Deus operava maravilhas através das mãos de Paulo jamais vistas e demonstradas. A expressão que a Bíblia RA traduziu como “extraordinários” é uma expressão que literalmente quer dizer “[milagres] jamais encontrados” “ou tas tychousas” (no particípio aoristo - passado completo). Essa expressão dirige a qualificação da palavra “milagres” dynameis, sendo uma característica de Lucas, pois além dele ser o que mais usa esse verbo, ele é o único que o usa no particípio.

A ênfase de Lucas desse episódio como algo extraordinário foi muito grande. Além de escrever a palavra “dynameis” (poderes, milagres), ele os qualificou “jamais encontrados”. A própria palavra em si dynameis já demonstra algo sobrenatural e maravilhoso. Mesmo assim, ele enfatizou ainda que esses milagres eram “jamais encontrados”. Isso quer dizer que Lucas queria enfatizar uma ação extraordinária de Deus. Sendo uma ação extraordinária e específica de Deus, não é base para repetir como uma liturgia na igreja. Da mesma forma que o pedido de Pedro para que o coxo olhasse para ele não é base para que alguém seja curado olhando para os nossos olhos nem que façamos o “culto da sombra” para curas, já que a sombra de Pedro também fazia maravilhas (At 5.15). Da mesma forma também devemos ver a unção de Jesus com lodo nos olhos do cego de nascença. Ela não é base para nós fazermos a mesma coisa, programando o culto da unção com lama, da sombra ou do “olhar de Pedro”. Essas ações foram extraordinárias e o todo da Bíblia não dá base para usarmos como liturgia.

2. Lucas e Paulo tiveram a intenção de fazer desse texto uma liturgia de cura para a igreja?

Precisamos notar que algumas passagens de Atos são apenas descritivas por não haver base no contexto do próprio livro de Atos ou em outras passagens da Bíblia, já que uma regra básica de Hermenêutica é que a Bíblia explica a própria Bíblia. Por exemplo: a escolha de Matias usando sorteio (um tipo de bingo da época) (At 1.23-26) não demonstrou que fosse uma forma que a Igreja deveria ter para escolha de presbíteros ou líderes. Lucas demonstrou que foi somente naquela ocasião, pois em outras passagens ele afirma que Paulo fazia eleição de presbíteros (At 14.23) e ensinou a Timóteo que houvesse critérios objetivos sem ao menos falar em sorteios (1Tm 3.1-7). Por isso, essa passagem não demonstra que a igreja deva fazer a mesma coisa.

Outra observação importante é que tanto no caso de Paulo como no de Pedro nenhum dos dois teve a iniciativa de fazer isso, mas foram as pessoas que tiveram a iniciativa de pegar os lenços da cabeça de Paulo ou o seu avental de fazer tendas, ou de ficarem na sombra de Pedro. Isso significa que não foi uma ação planejada, forjada, preparada pelos apóstolos Pedro e Paulo. No entanto, isso é totalmente diferente que os obreiros de algumas igrejas fazem hoje em dia.

 3. A Bíblia traz alguma outra passagem que demonstre que a igreja deva usar essa prática?

Precisamos observar que em nenhuma outra passagem da Bíblia ensina ou insinua que os apóstolos ou cristãos faziam isso como uma forma de Deus agir para curar ou fazer outra coisa.

De uma forma diferente, a unção dos enfermos com óleo que Marcos registrou nos evangelhos: “expeliam muitos demônios e curavam numerosos enfermos, ungindo-os com óleo” (Mc 6.13) pode ser confirmada como uma prática na igreja porque Tiago ensinou que se devia usar: “Está alguém entre vós doente? Chame os presbíteros da igreja, e estes façam oração sobre ele, ungindo-o com óleo, em nome do Senhor (Tg 5.14). O texto de Tiago dá base hermenêutica para que a igreja use em oração por enfermos, mas mesmo assim não dá base para se vender vidrinhos de azeite como sagrados. O texto afirma que é na igreja diante dos presbíteros.

4. Por que Paulo não ensinou isso às igrejas, principalmente, quando falou dos dons?

Outro fator importante é se essa prática fosse para ser usado na igreja, Paulo teria falado dela quando ensinou sobre os dons de cura ou maravilhas. Porém, Paulo entendia que o que aconteceu foi uma maravilha extraordinária (assim quer dizer o original) e que não era um princípio para que a igreja fizesse novamente.

Na verdade, por trás dessas unções de lenços, toalhas e copos d’água está um profundo espírito de avareza e aproveitamento da fé dos incautos. Fazem isso como uma forma de chamar pessoas à igreja e receberem ofertas, pois a toalha ou o lenço somente são dados àqueles que ofertam. Deus pela sua misericórdia tem demonstrado seu poder mesmo assim, mas isso demonstra uma baixa espiritualidade, tanto daqueles que promovem como daqueles que usufruem deixando cada vez mais as pessoas ao engano dos seus corações.

Outro problema é que quando isso acontece como uma prática litúrgica na igreja o desvio da fé em Cristo é desviado para o objeto como a serpente de bronze. A pessoa não confia que será Deus que fará o milagre, mas a toalha ungida, o copo d’água que foi abençoado. Com isso, Deus é apenas um detalhe. O centro é o apóstolo, bispo, pastor que ungiram ou oraram ou o próprio objeto. Daí as pessoas não precisam ter o compromisso de arrepender-se de seus pecados, buscar a presença de Deus porque eles já têm a toalhinha abençoada, o lenço ou um copo d’água que o espera encima da TV abençoados pelos obreiros.

Mas alguém pode argumentar que podemos ter isso também para o óleo quando Tiago afirma que os presbíteros devem ungir os enfermos. O óleo como um símbolo da unção do Espírito Santo traz uma obediência demonstrando que a cura é uma ação divina na igreja ordenada por ele. O centro é o Espírito Santo e foi ele que inspirou a sua Palavra. Todavia, Tiago não falou em abençoar o óleo como sendo um talismã, mas teriam que chamar os presbíteros para que orassem ungindo os enfermos. Diferente do copo d’água ou qualquer outra coisa que Deus não ordenou, ficando o peso sobre aqueles que oram.

Portanto, quero terminar dizendo que não há base para essa onda de superstição de lenços, toalhas e aventais ungidos. Precisamos ter cuidado com aquilo que a Bíblia não ensina e não promete para que não haja frustração. Depois, cuidado com o copo d’água, pois ele pode cair e danificar a sua TV.