sábado, 19 de agosto de 2006

A TRAIÇÃO DO EVANGELHO DE JUDAS




A notícia sobre o achado de um papiro em grego no Egito, chamado “O Evangelho Segundo Judas”, causou algumas dúvidas a incautos e a algumas pessoas desinformadas, nessa área, sobre a veracidade dos Evangelhos e sobre a identidade de Judas. O manuscrito afirma que Judas não foi o traidor e conta uma versão diferente dos Evangelhos, mostrando que Judas apenas cumpriu ordens do seu Mestre, Jesus. Segundo o texto, Judas não morreu logo depois da traição, mas fugiu para o deserto após a ressurreição de Cristo. O objetivo desse texto é analisar de uma forma racional, crítica e sensata esses argumentos, pois algumas considerações precisam ser feitas porque há equívocos, contradições e ignorância de termos.

Primeiramente precisa-se diferenciar veracidade de um documento antigo como autêntico da época e veracidade do conteúdo desse documento. Há uma grande diferença. Uma diz respeito se o documento é uma fraude arqueológica; a outra, se o seu conteúdo era aceito como verídico. Conforme alguns, Irineu de Lyon, que viveu no segundo século da era cristã, falou sobre esse documento e, por isso, colocam-no como uma prova que o documento existiu mesmo, embora que admitam que Irineu criticou-o como herético.

Irineu foi um dos que defendeu peremptoriamente a autenticidade dos Evangelhos, negando os demais escritos duvidosos. Ele chegou a dizer: 


Mateus publicou entre os hebreus um Evangelho escrito na própria língua deles, enquanto Pedro e Paulo anunciavam Cristo em Roma e lançavam os alicerces da Igreja. Depois da morte destes, Marcos, discípulo e intérprete de Pedro, nos entregou escrito o essencial da pregação de Pedro. Lucas, discípulo de Paulo, registrou em um livro o Evangelho pregado por seu mestre. João, o discípulo do Senhor, que se reclinou em seu seio, produziu, por último, seu próprio Evangelho, quando habitava em Éfeso, na Ásia. (Adversus haereses, III.1.l, em Eusébio, H.E. V.8 – citado H. Bettenson, 2001) 


Segundo Irineu, os Evangelhos são autênticos e ele jamais concordaria com um escrito totalmente contraditório a esses. Ele mesmo os cita sem jamais colocar o Evangelho de Judas. Atanásio, em uma carta datada em 367, numa tradução cóptica, apresenta a primeira lista dos 27 livros do Novo Testamento, autenticando os Evangelhos e ratificando o cânon de Irineu com respeito aos Evangelhos. No que diz respeito à autenticidade do documento como existente nesta época constatado pelo Carbono 14 e outros meios, não se tem dúvida. Na verdade, havia muitos outros livros chamados Evangelhos no segundo século dessa era que não eram aceitos como autênticos e, por isso, não estavam dentro do Cânon (padrão) reconhecido pela comunidade dos cristãos. 

Portanto, no segundo século da era cristã, muitas heresias gnósticas passaram a penetrar no seio da Comunidade Cristã. Esses líderes passaram a escrever conforme seus ensinamentos e atrair adeptos às suas crenças. Por causa disso, a Comunidade Cristã tinha alguns critérios para aceitar um livro como historicamente verdadeiro e digno de aceitação como prática. O primeiro critério era que teriam que ser de autoria de uma testemunha ocular, um apóstolo de Cristo ou aceito pela Comunidade como alguém que estivesse juntamente com os apóstolos de Cristo. O que se vê é que os quatro Evangelhos vem de 2 discípulos de Jesus, Mateus e João e de duas pessoas consideradas por Lucas de ὑπερετης hyperetes, que quer dizer ministro em grego (Lucas 1.1,2). Segundo o historiador e Médico Lucas, essas testemunhas oculares eram aqueles que acompanhavam os apóstolos, chamados de ministros hyperetes. Marcos foi chamado assim por Lucas (Atos 13.5 o primeiro nome de Marcos era João), sendo que ele serviu de fonte para os demais Evangelhos. Não obstante a Comunidade Cristã ter colocado esse critério para se aceitar como legítimo um documento e digno de paradigma de fé, muitos começaram a escrever documentos e colocar nome de um dos apóstolos para serem aceitos. Esses textos são chamados de pseudoepígrafos. Por isso, vários livros foram chamados pelos nomes dos apóstolos no segundo século. Como exemplo, temos: Evangelho de Pedro, Protoevangelho de Tiago, Evangelho de Tomé, Evangelho de Filipe, Evangelho de Bartolomeu, Evangelho de Nicodemos, Evangelho de Gamaliel, Evangelho da Verdade. Apocalipses de Pedro, de Paulo, de Tomé e de Estêvão. Não seria admiração que poderia estar circulando aqui o Evangelho de Judas também por estar entre essa data. 

Portanto, o que se tem que analisar é se o conteúdo foi relevante para a Comunidade Cristã da época, pois se esse livro não foi aceito como legítimo pela comunidade daqueles dias como os demais pseudoepígrafos e apócrifos, por que seria hoje? O primeiro e mais antigo Evangelho que foi escrito, sendo aceito pela maioria dos estudiosos, foi o Evangelho de Marcos. Apesar dos estudiosos discordarem nas datas, os anos 57 a 59 são mais confiáveis, pois Marcos pediu auxílio a Pedro, conforme Irineu, bispo de Lyon, que afirma que Marcos foi discípulo e intérprete de Pedro. Os apóstolos Pedro e Paulo morreram sob o imperador Nero no ano 64 e pelo texto de Atos, demonstra-se que Paulo ainda não tinha morrido. Se Lucas teve Marcos como fonte, então seria antes do ano 64 da nossa era. As passagens relativas que se repetem em Mateus e em Lucas no Evangelho de Marcos demonstram que esses Evangelhos usaram-no como fonte também. No caso de João, mesmo não tendo passagens semelhantes aos outros três, ele dá evidência e demonstração de sua consciência da existência dos demais Evangelhos ao escrever a sua obra. Portanto, o Evangelho de Marcos já demonstrava a traição de Judas, confirmado pelos demais Evangelistas, que escreveram em datas, cidades e contextos diferentes. Lucas, que escreveu Atos, confirma isso relatando a substituição de Judas por outro discípulo chamado Matias (Atos 1.15-26). Um dos papiros mais antigos é do Evangelho de João que está na biblioteca John Rylands de Manchester, Inglaterra desde 1920. Esse manuscrito chamado de P52 é datado do ano 125 demonstrando que desde cedo os Evangelhos eram reconhecidos como autênticos, pois, apesar de ser escrito na Ásia Menor na cidade de Éfeso, foi achado no Egito. Ora, se o Evangelho de João, que mais mostrou a identidade de Judas, a sua traição e a declaração de Jesus sobre este, estava em plena aceitação na Comunidade Cristã, tendo até cópias, por que se daria crédito a esse documento contraditório desmentindo até testemunhas oculares como os apóstolos? 

Apesar de Judas também ser uma testemunha ocular, havia os pseudoepígrafos da época. Por isso, deve-se analisar pelo crédito das demais testemunhas oculares e pela coerência histórica dos demais documentos achados, até mesmo antes da época desse documento. Por que se daria mais crédito a um documento suspeito com o nome de Judas do segundo século não tendo provas que existisse no primeiro. E mesmo se existisse, é difícil dar mais crédito a esse documento em detrimento aos aceitos oficialmente pela Igreja, cujos apóstolos ainda estavam vivos. Como descrer em cinco documentos escritos no primeiro século, confirmados por outros autores, inclusive por gnósticos e hereges da época? O bom senso e a inteligência escolhem os Evangelhos e Atos. Se acontecesse isso, colocaria toda a história dos Evangelhos em dúvida, inclusive a existência de Judas, pois somente os Evangelhos falam desse personagem.

Há vários fatores nesse documento que se concorda com a Comunidade Cristã da época para não tê-lo aceito como legítimo. A primeira é a contradição dos relatos, tendo como base os próprios Evangelhos, pois como se basear em um documento que se tenta provar que é contraditório mostrando outra versão deste? Seria algo absurdo. Se Judas somente pode ser conhecido pelos Evangelhos, então os Evangelhos não podem ser desacreditados, sob pena de entrar em contradição. Outro fator importante é o conteúdo do documento com teor gnóstico, pois o documento diz que Jesus falou a Judas: "Você tem a tarefa maior: vai sacrificar o corpo que carrega o meu espírito". Esse pensamento é contrário ao que o próprio Jesus e os apóstolos ensinaram. Todos eles escreveram várias epístolas alertando à Comunidade Cristã da época sobre essa ideologia e doutrina gnóstica que afirmava que a carne era má e que o espírito precisava se libertar desta carne através de um autoconhecimento interior e esotérico. Por isso, os gnósticos modernos defendem essa versão, mostrando que é conforme o que eles crêem. Portanto, conclui-se que esse documento pode ser legítimo no sentido de ser mesmo um achado arqueológico, mas não tem chance nenhuma de que seu conteúdo seja fidedigno pela confiabilidade dos Evangelhos canônicos (padrões), pela coerência histórica e testemunho de outros autores da época. Conclui-se que não somente Judas é o traidor histórico de Cristo, mas o seu Evangelho também.

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