No mundo da
Erudição e dos estudiosos da Bíblia paira uma mania e um perigo: quando um
livro é escrito ou um escritor traz uma tese, geralmente os outros eruditos
seguem sem questionar, sem falar nos estudantes de teologias e seminaristas. Um
exemplo disso é a exegese truncada e defeituosa de Jo 21.15-17 dizendo que não
há diferença de significado entre os verbos ἀγαπάω agapao e φιλέω phileo.
Apesar de respeitar as interpretações de alguns autores, inclusive da Editora
Vida Nova, bem como Luiz Sayão que fez um breve apanhado dessa exegese na
revista Enfoque, tem-se que afirmar que a negação das diferenças de significado
desses dois verbos consiste em lapsos de exegese, bem como erros sutis de
hermenêutica.
Toda língua tem
palavras com suas denotações e conotações diversas. Apesar de que no português
o verbo amar não tem vários significantes, mesmo tendo vários significados, nas
outras línguas, não é assim. Para os gregos eles tinham, pelo menos quatro significantes
para o que traduzimos para amar: ἀγαπάω agapao, φιλέω phileo, ἐράω erao e στέργω
stergo. Para os gregos o uso dessas palavras tinham acepções especiais e
distintas, dentro do significado semântico da época. Por exemplo: o verbo φιλέω
queria dizer ter afeição, incluindo sentimentos. Segundo o Dr. W.
Gunther no Dicionário Internacional de Teologia do N.T. ele afirma que "as
idéias que se vinculam com φιλέω phileo não têm ênfase claramente
religiosa". Para os gregos o verbo φιλέω phileo leva um significado
de um gostar mais subjetivo, instável, amigável. Para o verbo ἀγαπάω agapao,
a literatura secular grega denota como tratar com respeito, dar boas vindas,
estar contente com. Todas essas acepções demonstram objetividade e prática.
Há ocasiões que o significado é alguém favorecido por um deus (cf. Dio.
Cris., Orationes 33, 21, citado pelo DITNT, Editora Vida Nova Vol. 1).
Há ocorrência do substantivo ἀγάπη como título à deusa Ísis (P. Oxy.
1380, 190; século II d.C.). O que se pode notar claramente pelas acepções do
grego secular é que os significados eram claramente distintos em suas essências.
Um demonstrava significado mais subjetivo, de amizade; o outro, mais prático e
relacionado a deuses. Se os escritores que escreveram o NT usavam a língua
grega, tem-se que esperar que eles atentavam para as diferenças de
significados, pois, caso contrário, eles entrariam numa confusão semântica.
F. F. Bruce, defendendo as palavras como sinônimas no seu comentário de Jo 21.15-17, demonstra que em Gn 37.3 na LXX é usado o verbo ἀγαπάω agapao, mas no
verso posterior v.4 é usado φιλέω phileo. Com isso ele chega a uma
conclusão que o texto de João 21 as palavras são sinônimas também. No mesmo
parágrafo do comentário, ele escreve: "o verbo ἀγαπάω agapao em si
não denota necessariamente um amor mais sublime; isto só ocorre quando o
contexto o deixa evidente" (BRUCE, F. F. João, Introdução e Comentário,
Vida Nova pág. 345). Seguindo o conselho do Mestre F. F. Bruce é que se
discorda dele mesmo, porque o contexto e a análise exegética demonstram que em
João 21.15-17 os verbos têm significados diferentes. Essa alusão de Gn 37.3,4
não é decisiva para se dizer que em João 21.15-17 os verbos ἀγαπάω e φιλέω
têm significados semelhantes. Primeiro que os rabinos eruditos que escreveram a
LXX poderiam ter interpretado o verbo ´aheb no verso 4 como uma afeição
além do significado do verso anterior, pois isso era normal da tradução rabínica
da LXX. Segundo, mesmo que tenha o mesmo significado, não desfaz o contexto
exegético de João 21.15-17. Na linguagem, embora que possa até haver um
significado pelo outro, deve-se ter todo o cuidado e não pensar que todas
as vezes que algumas palavras diferentes vierem num mesmo texto são sinônimas.
Apesar de que para a nossa língua uma palavra possa parecer sinônima, o público
alvo primitivo da língua original via claramente a diferença. Por exemplo,
temos as advertências de Paulo aos Gálatas 5.19, 20 onde ele escreve μοιχεία (moicheia),
πορνεία (porneia), ἀκαρθαρσία (akartharsia), ασελγεἰα (aselgeia) e que todas essas palavras nos
idiomas ocidentais quase têm o mesmo significado. Não obstante haver palavras
que os evangelistas usaram uma pela outra como o verbo μοιχέω (moicheo) derivado do substantivo μοιχεία (moicheia) em Mt 5.28, em Gálatas ele
coloca como distinto, pois o que para nós quase não tem diferenças, para o
público grego havia distinções consideráveis. No outro verso de Gálatas Paulo dá
mais um exemplo: θυμοί (thumoi),
ἐριθεία (eritheiai), διχοστασία (dichostasia), αἱρέσις
(hairesis). Na língua portuguesa essas palavras quase não
têm diferenças em significado, pois todas elas dizem respeito a contendas e
divisões. Porém, o que para nós o significado não tem quase diferença, para o
público alvo havia uma considerável distinção de significado. Portanto, deve-se
ter muito cuidado ao dizer que duas palavras têm a mesma denotação num texto,
exceto se o contexto e a gramática confirmarem claramente, que não é o caso de
João 21.15-17.
Um dos argumentos, até infantil, usado é que Jesus
falou em aramaico e no aramaico não há diferenças nos verbos. Embora que não se
possa provar essa declaração, pois não se saberia quais as palavras que Jesus e
Pedro usaram especificamente no diálogo em aramaico, o texto inspirado é o
texto que João escreveu na língua grega. Não obstante que Jesus tenha falado em
aramaico com Pedro, é irrelevante saber quais as palavras em aramaico, porque o
inspirado foi o texto final escrito em grego koinê e nesse há diferenças muito
óbvias.
Quem mais explorou o verbo agapao ἀγαπάω foi o
evangelista João. Ele demonstra que esse amor é uma prática sacrificial
completamente objetiva em prol de alguém (Jo 3.16; 15.12,13; 1 Jo 4.10). João
sabia que os dois grandes mandamentos falados por Jesus eram com esses verbos
na LXX (Mc 12.29-31), mostrando com isso a supremacia em relação a phileo
φιλέω. Quando João cita φιλέω phileo separadamente como em
5.20 do amor do Pai para com o Filho; 16.27 do amor do Pai para com o homem,
não implica dizer que todas as vezes que esse verbo vier seja sinônimo de apapao
ἀγαπάω. Inclusive pode-se pensar também que João queira mostrar uma afeição
da parte do Pai para com o Filho e para com aqueles que os seguem, já que Deus
é um ser pessoal. É difícil pensar que João, tendo demonstrado o amor de Deus
sacrificial e gracioso em ἀγαπάω agapao, agora queira colocar uma
palavra que demonstre um amor humano, instável e afetivo no lugar do que ele
mesmo escreveu. Se isso foi um estilo de João, por que ele não usou φιλέω phileo
por ἀγαπάω agapao nas suas epístolas? Todo escritor usa uma forma
estilística com o objetivo de embelezar sua obra. Se esse foi o caso, por que
João não usou nas epístolas onde mais falou de amor? Outro fator importante:
usar o verbo φιλέω phileo separadamente é diferente de usá-lo como sinônimo
de ἀγαπάω agapao no mesmo contexto. Dessa forma nenhum escritor
usou no NT, exceto João. Será que todos os outros escritores eram tão incultos
que somente João usou esse estilo para essas duas palavras e esse somente no
diálogo de Jesus e Pedro?
Apesar de Paulo ter usado φιλέω phileo também
em 1 Co 16.22, então, por que Paulo não usou φιλέω phileo por ἀγαπάω
agapao em 1 Co 13 e em outras passagens no mesmo contexto? será que
Paulo não tinha esse estilo para ἀγαπάω agapao e φιλέω phileo?
Deve-se lembrar que o verbo usado separadamente não é a mesma coisa que usá-lo
num mesmo contexto. Portanto, esses poucos versos que φιλέω phileo é
usado no Evangelho de João não são decisivos para desfazer as diferenças de
significado na interpretação de Jo 21.15-17. O Dr. William Hendriksen, um dos
mais respeitados exegetas reformados do NT, admite as diferenças desses verbos.
Ele afirma que as diferenças deles estão entre devoção e apenas emoções.
Hendriksen, comentando o verso 16 diz: "Pedro dá a mesma resposta de antes.
Ele ainda não ousa afirmar que possui o amor de teor mais elevado"
(Comentário do NT, pág. 927, Cultura Cristã). Realmente quando se analisa o
texto de uma forma mais profunda, não se tem alternativa, se não, dar aos
verbos significados diferentes.
ANÁLISE TEXTUAL
João 21:15 Simão, filho de João, amas-me mais do
que estes outros?
Σιμων Ιωνα,
αγαπᾳς με πλειον τουτων
Simão conhecia muito
bem o que Jesus ensinou sobre amor. Um amor de alguém dar a vida por outra
pessoa e um amor de orar pelos inimigos (Jo 15.13; Mt 5.44). Os apóstolos
traduziram por ἀγαπάω agapao esse amor. Portanto, Pedro sabia
muito bem o que Jesus perguntava. Na construção grega Jesus amplia o
significado do verbo ἀγαπάω agapao, pois a locução comparativa é
composta de um adjetivo neutro πολυ polu na forma comparativa formando
uma expressão adverbial, pois modifica o verbo ἀγαπάω agapao. A
pergunta de Jesus é se Simão o ama mais que aqueles que estavam ali, logo Jesus
identifica a qualidade do amor que pergunta, pois a frase é adverbial
modificando o verbo ἀγαπάω agapao. Portanto, πλειον τουτων pleion touton
justifica o uso de ἀγαπάω agapao, pois é um amor superior. Pedro
sabia sobre o "amarás ao Senhor teu Deus de todo coração" e Jesus
evoca um amor superior que não poderia ser como a resposta de Pedro. O Dr.
Werner de Boor, em seu comentário do Evangelho de João, afirma: “Ao perguntar,
Jesus usou o termo pleno e vigoroso para amor que tem força suficiente para
expressar também o amor de Deus.
Pedro não ousa aplicar essa palavra ἀγάπη agape para sua posição
perante Jesus" (Comentário Esperança, pág. 209, Editora Esperança). Assim,
Jesus repete mais uma vez se Pedro
o ama com o verbo ἀγαπάω agapao. Pedro responde com um sim
categórico, mas com um conceito
diferente do que Jesus lhe perguntou. Pode ser que Pedro, quando disse: “tu
sabes”, queira se referir ao episodio da negação de Cristo; mostrando com isso
que Jesus era testemunha que seu amor era apenas como uma amizade, não como o
mandamento dito pelo seu Mestre.
João
21:17 17 Pela terceira vez Jesus
lhe perguntou: Simão, filho de João, tu me amas? Pedro entristeceu-se por ele
lhe ter dito, pela terceira vez: Tu me amas?
λεγει αυτῳ το τριτον, Σιμων
Ιωνα, φιλεις με? ελυπηθη ὁ Πετρος ὁτι ειπεν αυτῳ το τριτον: φιλεις με?
João declara que Jesus pergunta a Pedro pela terceira
vez, e dessa vez usa o verbo φιλέω phileo. Caso se diga que os
significados são sinônimos, estar-se-ia colocando Jesus num dialogo redundante e
sem sentido. Por que Jesus perguntaria três vezes a Pedro a mesma coisa? Se
alguém argumenta que seria uma forma de Jesus demonstrar a Pedro que ele não o
amava necessariamente, apesar de ser um estilo não inteligente, esse argumento
aumenta as evidências das diferenças de significado dos verbos, pois Pedro
responde três vezes que o ama, só que φιλέω phileo e pela tristeza Pedro
não tinha a intenção de responder com satisfação.
O argumento mais
forte e decisivo é exatamente o comentário do próprio evangelista João ao
afirmar que Jesus pergunta pela terceira vez. João declara que Pedro ficou triste
e afirmou o motivo: “Porque Ele lhe disse: Amas-me?”. O próprio autor do livro
repete novamente o verbo na expressão que Jesus falou: φιλεις με? “phileis
me?”. O autor demonstra que a razão da tristeza de Pedro foi exatamente a
expressão que Jesus falou, pois João a repete. Fica óbvio que Jesus estava
levando Pedro a refletir sobre o amor objetivo de entrega e de devoção em
contraste com uma simples afeição e amizade como traduz o Dr. Hendriksen. Portanto, Pedro se entristeceu porque Jesus não perguntou com o mesmo verbo das duas perguntas, αγαπᾳς με agapas me? Agora, Jesus pergunta com o mesmo verbo que Pedro lhe respondia φιλεις με phileis me?
Alguns argumentam
que por existirem algumas outras palavras sinônimas no texto como βοσκω bosko
e ποιμανω poimano; αρνιον arnion e προβατον probaton; οιδα
oida e γινωσκω ginosko, dizem que é um sinal que ἀγαπάω agapao
e φιλέω phileo querem dizer a mesma coisa. Segundo o Dr. Hendriksen, o
motivo de Jesus falar cordeiros e ovelhas demonstra uma generalização da sua
igreja, que inclui cuidado com todas as faixas etárias. Embora que pareça a
mesma coisa, para os ouvintes era importante ter essas diferenças, como também os verbos βοσκω bosko
– alimentar e ποιμανω poimaino – pastorear podem demonstrar um ministério
completo de pastorear incluindo o cuidado de suprir e alimentar. As diferenças
dos verbos οιδα oida e γινωσκω ginosko demonstram diferenças
semânticas no próprio NT, pois οιδα oida significa um conhecimento mais
abrangente (Mt 15.12; Jo 13.7; 16.30), γινωσκω ginosko, mais prático (Lc
10.22; Jo 7.27). Se fosse apenas um estilo, João teria colocado na segunda
resposta de Pedro γινωσκω ginosko, mas não foi o caso. Portanto, Pedro
poderia estar afirmando que Jesus tanto sabia οιδα (oida) todas as
coisas como também sabia na prática γινωσκω (ginosko) por causa da sua
negação. Pedro não ousou declarar que o amava no amor mais completo e perfeito
de entrega, mas apenas em afeto. Pedro sempre leva a triste lembrança da sua
negação e que Jesus o cura levando a enfrentar uma realidade: Embora que Pedro
tenha sido falho no amor para com o seu Mestre, ele o ama com um amor eterno.
Portanto, esses aparentes sinônimos não desfazem as diferenças de significado.
Realmente tem-se que
admitir que a negação das diferenças de significado dos dois verbos empobrece a
cena e leva até ter uma noção de um Jesus com um diálogo não inteligente,
repetitivo, pois Pedro termina suas respostas sempre dizendo que ele sabia
todas as coisas. Dizer que Pedro estava dizendo que amava a Jesus com um amor
Pleno é classificar Pedro como arrogante e ainda não tratado.
Sente-se pelos
exegetas que vão pelo caminho de uma exegese que elimina a beleza de um texto e
que obscurece a beleza da língua grega e da mensagem que Deus queria realmente
falar aos povos de todas as nações, deixando de ouvir os gritos do próprio
texto que realmente havia uma intenção diferente para os verbos gregos.